Há coisas que, estupidamente, me custam a compreender que façam a euforia de um Governo socialista
VAI por aí uma euforia tonta com as OPA e a Bolsa de Lisboa. Em tom entusiasmado, garantem-nos que estão de volta os bons tempos do optimismo económico e da «dinamização» da sempre letárgica Bolsa de Lisboa, e juram até que os simpaticamente chamados «investidores internacionais» estão de volta ao mercado de capitais português. Confesso que não percebo tanta euforia: quando os abutres financeiros voltam a pairar no céu é porque há carne fresca para engolir. Como habitualmente, as vítimas vão ser os ingénuos que ouviram dizer que «a bolsa está a dar» e que, sem tempo, conhecimentos e «contactos», vão meter lá as suas poupanças só para perceber que chegaram tarde e a más horas, porque os «investidores internacionais» e os especuladores nacionais já «realizaram mais-valias» e, ala que se faz tarde, foram-se para outras paragens. Já assisti, pelo menos, a duas conjunturas de euforia bolsista entre nós, e não me lembro que a bolsa tenha saído credibilizada ou que o país tenha visto a sua riqueza acrescida, as suas empresas mais competitivas ou a economia mais sólida. Lembro-me, sim, de algumas fortunas feitas em «over-night» e de algumas empresas sem futuro capitalizadas até ao absurdo, e logo vendidas pelos seus proprietários.
Mas a verdade é que andam todos eufóricos, com estes jogos de OPA e contra-OPA. Ensinam-nos, até às décimas, a composição societária da Sonae, da PT, da EDP, do BPI, do BCP, do BES, ficamos a saber quem está por trás de quem, quem está com os espanhóis e quem é suspeito de «patriotismo», quais são os negócios com marca da Opus Dei e os da Maçonaria, e, em tom íntimo, ouvimos dissertar sobre as intenções do Paulo, do Belmiro, do Ricardo, do Fernando e do Engenheiro. Espantados, vemos o acossado presidente da PT discursar às tropas comparando-se ao general Kutuzov resistindo ao Napoleão-Belmiro às portas de Moscovo, e vemos os amigos de ontem acusarem-se de ataques «hostis» e, entrelinhas, de quererem roubar à má-fila o negócio alheio. A paz implodiu entre os cavalheiros da finança, mas, aparentemente, isto é um bem para o país, tão bom que os ministros do Governo não disfarçam a sua satisfação com o que consideram «a retoma da confiança» e «a demonstração de que o mercado funciona». Não compreendo: não foi Marx quem ensinou que é assim que o capitalismo caminha para a sua autodestruição, engolindo-se todos uns aos outros? E não são estes, apesar de tudo, ministros de um governo socialista?
Mas há mais coisas que, estupidamente, me custam a compreender que façam a euforia de um Governo socialista, observando de fora, e deleitado, este espectáculo de miúdos a jogar Monopólio. Vejamos: se, depois de sucessivas fusões e aquisições, só restam praticamente três bancos privados portugueses, não é mau para a concorrência e para os consumidores que um deles engula outro? Com mais de meio milhão de desempregados, não é pior que as anunciadas OPA resultem também em já anunciados despedimentos? Quando se quer impor o aumento da idade da reforma, é saudável que se anunciem, como resultante das OPA, reformas antecipadas, chamadas tecnicamente de «aproveitamento de sinergias»?
E, já agora, o principal: de onde vem tanto dinheiro? À custa de quem foram obtidos os astronómicos lucros da EDP? É sem dúvida louvável que o presidente-cessante da empresa se despeça dando um bónus de 120 euros a cada um dos seus 8.000 trabalhadores (além dos tradicionais e infinitamente mais generosos prémios aos administradores, decididos por um órgão societário, hoje determinante, chamado «comissão de vencimentos»): mas não seria mais louvável que tivéssemos a electricidade mais barata, conforme foi solenemente prometido quando se privatizou a EDP? E o que andava a PT a fazer com tanto dinheiro que, só agora, sob ameaça, resolveu dobrar o dividendo dos accionistas, assim como só agora se dispõe a aceitar o fim do seu confortável monopólio de facto na rede fixa? Não teria sido possível, sem OPA, ter aberto o sector à concorrência muito antes, para que o telefone tivesse deixado de ser entre nós um produto de luxo e os portugueses não fossem obrigados a sofrer o pior e mais caro serviço de telefone fixo de toda a Europa?
E os lucros dos bancos, santo Deus?! Como é que num país onde o PIB cresce 0,5% e os depósitos dos clientes, geridos «private» e profissionalmente, pouco mais valorizam do que a taxa de inflação (e, vá lá, vá lá...), os bancos conseguem apresentar lucros de 60 e 70%? E como podem pagar em média 10% de IRC sobre os lucros - graças ao «off-shore» da Madeira, à «consolidação fiscal» e a uma série de bonificações e isenções - enquanto os seus clientes pagam até 42% de IRS e o porteiro do banco alguns 20%? Onde está a riqueza do país correspondente à riqueza destes gigantes nacionais? Onde estão as empresas que crescem e criam empregos e riqueza graças a financiamento acessível, energia a preços concorrenciais e telecomunicações eficientes e baratas?
Sim, eu sei: lá fora, dizem-nos, é igual. «Lá fora», e «na vizinha Espanha», em particular, também há OPA e «off-shores» e fusões e lucros absurdos no sector financeiro. Já me explicaram isso vários economistas, vários ministros, vários pragmáticos - e eu continuo sem perceber bem. Também sei que há a «globalização» e a necessidade de as nossas principais empresas ganharem «dimensão crítica», para resistirem a investidas do estrangeiro e não termos de cair na situação onde agora se encontram espanhóis e franceses, inventando legislação retroactiva e batotas de emergência engendradas pelos governos, para defenderem os seus «campeões nacionais». Mas, permitem-me um desabafo? A finalidade do capitalismo, como aliás a de toda a economia, não é a satisfação das necessidades individuais? Pois se assim é e se vivemos num incontornável mundo globalizado, a mim, enquanto consumidor e destinatário final das politicas económicas, é-me indiferente a nacionalidade da operadora telefónica, da seguradora do meu carro ou do banco que me financia o crédito à habitação: quero é poder escolher entre quem melhor me sirva.
Por teimosia patriótica ou por necessidade estratégica, acho prudente não abrirmos mão de algumas coisas, mas de outra natureza: a água, a língua e a cultura, a paisagem natural e o património, as 200 milhas, as leis e tradições de vida em sociedade, a Justiça pública, a Caixa Geral de Depósitos, a Selecção Nacional de Futebol e o arquipélago dos Açores. Acrescento, por razões de pura política, mais duas instituições, que acho que devem ser defendidas e até subsidiadas: a agricultura e o Vasco Pulido Valente. A agricultura, por razões à vista de preservação da vida rural e da paisagem e de povoamento e ordenamento do território; o Vasco Pulido Valente, porque, sem o seu pessimismo extremo, temo que já não restassem, por oposição, quaisquer razões para optimismos.
Agora, de duas uma: ou se quer ver o mercado funcionar a sério e então não são admissíveis distorções à concorrência nem situações de favor e privilégio; ou isto não é a sério e não finjam que é, quando dá jeito, e que já não é quando aqui d’el rei que vêm aí os espanhóis engolir os nossos «campeões nacionais».
Miguel Sousa Tavares
(Expresso)
domingo, março 26, 2006
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