quinta-feira, junho 23, 2005

Não há heróis perfeitos

Não há heróis perfeitos
Texto publicado no "Expresso", no último fim-de-semana.

Álvaro Cunhal não era coerente e não tinha uma fé. O elogio recorrente esconde, de facto, uma enorme desconsideração. Cunhal era absolutamente político. Não queria apenas ser respeitado. Queria vencer. Com inteligência, mudou sempre que sentiu que tinha de mudar. Maldisse a China, abraçou a China. Combateu Soares, deu a vitória a Soares. Fez a revolução, travou a revolução. Escondeu a sua vida privada, exibiu fotografias da neta quando o partido precisou de aparecer doce e de rosto humano. Contrariou o culto da personalidade, alimentou o mito do segredo. Cunhal, como qualquer génio político, era um táctico. Tão brilhante que nem se dava por isso.

Cunhal não esteve no lado errado da história. Bateu-se contra o fascismo – que alguns, como Maria José Nogueira Pinto e Ribeiro e Castro, toleraram – e o fascismo foi derrotado. Bateu-se pela conquista de direitos sociais e eles foram absorvidos pelo sistema. Bateu-se pela existência de um movimento organizado de trabalhadores – por vezes sufocando-o – e os sindicatos são hoje a força social organizada mais relevante no nosso país. Os comunistas não estiveram do lado errado da história. Marcaram o século XX e, depois dele, qualquer assalariado vive infinitamente melhor do que vivia. Na política e na história, a derrota é só o epílogo de muitas vitórias.

Quem esperava que Álvaro Cunhal mudasse de posição, aos 80 ou 90 anos, não percebe nada da natureza humana. No fim da vida somos fiéis à nossa vida. É isso que temos de ser. Cabe a outras gerações destruir o que se construiu. E aí está a grande fraqueza de Álvaro Cunhal. Apesar da sua absoluta superioridade intelectual, cercou-se de mediocridade. Para desgraça do PCP, o seu génio foi maior do que a sua generosidade. Deixa um enorme passado aos comunistas. Não lhes deixa grande futuro.

Daniel Oliveira - Blog Barnabé

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