quarta-feira, julho 27, 2005

Argumentos da treta

As críticas a Soares

Ou há qualquer coisa que me escapa nas objecções que se levantam à candidatura de Mário Soares ou, na verdade, não existe nenhum problema. Alegam que a idade de Soares é demasiado avançada. Será avançada. Estatisticamente, já há uns anos que nem por cá deveria continuar a andar. Mas vai andando, activo e lúcido. Quanto a isso ninguém quererá fazer vingar tese contrária. E se mantém a lucidez, não vejo como se possa dizer que a sua idade é demasiado avançada. Nem vejo como se possa estabelecer o que é uma idade demasiado avançada. Ou uma pessoa mantém as suas faculdades ou não. Ponto final. É verdade que na sua idade há maior probabilidade de ter problemas de saúde que o impossibilitem de desempenhar o cargo e que a CRP não prevê a destituição de funções por esse motivo. Mas a CRP, que é uma boa constituição, ao contrário do que muitas vezes se ouve, não se preocupou com a idade máxima dos presidentes por boas razões. Nomeadamente, porque, em última análise, ter esse factor em consideração lançar-nos-ia num trajecto semi-inquisitorial quanto aos comportamentos de risco dos candidatos. Se é lícito equacionar a idade, também é lícito equacionar o tabagismo, a alimentação, o comportamento sexual, etc., etc. Da mesma forma, se não faz sentido equacionar estes comportamentos, também não fará equacionar a idade como factor determinante do desempenho.

A outra objecção que levantam contra Soares é o facto de representar uma imagem do passado. Ora, com um pequeno esforço de memória recordamos que Soares saiu da vida política nacional precisamente ao mesmo tempo que Cavaco. Em rigor, até um pouco depois. Nenhum representa, nesse sentido, mais passado do que o outro. Aliás, em termos de actividade recente, menos relacionada com os interesses de uma eventual candidatura, Soares tem-se mostrado muito mais interventivo que Cavaco.

Neste esforço de querer dar por expirado o prazo de validade de Mário Soares, querem mesmo colar o espaço de acção do ex-presidente quase exclusivamente à revolução de Abril. Esta tentativa constitui uma dupla falácia. Nem o espaço de acção de Soares se esgotou na revolução ou nos seus episódios posteriores nem a sua actuação, nessas alturas, evidenciou qualquer extremismo político. De resto, qualquer simpatizante dos partidos à esquerda do PS não hesitará em tecer duras críticas a Soares e, até, em apelidá-lo de contra-revolucionário. O que sobressai das primeiras acusações é, mais uma vez, uma vontade mal disfarçada de querer dar por terminadas as conquistas políticas e sociais que a revolução trouxe. Pretende-se menosprezar o valor dos que, antes e depois de 1974, lutaram pela implantação da democracia, uma vez que esta não correspondeu, e provavelmente ainda não corresponde, aos seus anseios económicos ultra-liberais. Mas a realidade é bem diferente. As acções anti-fascistas que culminaram no 25 de Abril e na posterior instauração da democracia não se esgotaram nesses dias. Tudo o que agora somos a elas se deve. E, se alguma razão de queixa temos, é em relação aos tiques que nos sobraram de 48 anos de ditadura.

O último reparo que igualmente fazem a Soares é a sua provável actuação como Presidente. Imaginam-no demasiado interventivo, talvez mesmo um foco de instabilidade. É previsível que Soares não tenha muitas razões para os calculismos políticos que caracterizam a actuação de quem depende das reeleições. É sabido que possui ideias que o distanciam da corrente política de onde provém o governo de José Sócrates. Também é praticamente garantido que assumirá um papel mais activo que Sampaio. Mas daí a querer transformá-lo em foco de instabilidade vai um salto gigantesco. Muito mais distante esteve Soares dos governos de Cavaco, também com maioria absoluta, e não foi por isso que se registou qualquer instabilidade. Nem sequer se pode dizer que as relações institucionais tenham sido afectadas. Não se pode recusar a sapiência e o pragmatismo políticos que Soares possui, coisas que vêm com a experiência e com a argúcia. É difícil imaginar Soares a criar mais problemas a um governo PS do que a um governo PSD. Não é descabido que continue a operar nos bastidores políticos, como todos fazem, para defender os seus interesses, sobretudo dentro do PS. Contudo, não há que recear mais de Soares do que de qualquer outro político nestas condições, sob pena de se cair numa ingenuidade gritante.

Ao falarmos destas questões já nos estamos a aproximar de uma discussão política mais razoável. Deixamos o campo da geriatria amadora e da reacção contra Abril para passarmos a discutir princípios e expectativas de desempenho mais palpáveis. Quem não quer voltar a ver Mário Soares na presidência que critique o que há para criticar: que é muito de esquerda, que não é suficientemente de esquerda, que tem uma visão errada do direito internacional, etc. Criticá-lo porque tem mais de oitenta anos, lutou contra a ditadura e esteve ligado ao pós-25 de Abril, isso não.

visto no 'Viva Espanha'

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