quarta-feira, agosto 24, 2005

A Arder

Sócrates virou costas ao país para fotografar girafas e hipopótamos, e vira-as agora aos jornalistas que o interpelam. Com o habitual ar de enfado blasé que o caracteriza, tolera com esforço os desabafos de meia dúzia de populares que lhe pedem as devidas meças. Com o desplante próprio de quem tem mais em que pensar, explica que apenas "ontem" se verificou uma "ocorrência extraordinária de incêndios", razão pela qual apenas agora foi pedida ajuda à União europeia. Um anónimo, de esgar desesperado, sugere "calamidade", mas Sócrates limita-se a quase sorrir, retorquindo que "calamidade" (enquanto conceito jurídico?), não é aquilo. Ao mesmo tempo, insta a população civil a voluntariar-se, para ajudar no combate às chamas.
Já Jorge Sampaio, um outro quido preocupado com os destinos chamuscados da nação (de férias desde o início de Julho) interrompeu finalmente os banhos frescos para se "inteirar" da situação. Reunido com meia dúzia de "operacionais" num "centro de decisão" qualquer, acaba por, mais uma vez, se limitar a proferir meia dúzia de banalidades que, de tão banais (passe o pleonasmo), são quase ofensivas para os ouvidos de quem combate os fogos e a exaustão há já vários dias.
Noutro canal, um presidente, penso que da associação de bombeiros profissionais (ou coisa parecida), diz algo que só pode ser mentira (só pode): que estes continuam disponíveis nos quartéis e à espera de serem chamados. Parece que são cerca de 800. O ministro da Administração Interna (que tem o mérito de se mostrar preocupado), diz que não pode fazer nada porque aqueles profissionais são da competência dos municípios. Mas confirma: faltam meios e gente para combater os fogos... E pronto, mais uma aberração que fica aparentemente sem explicação, neste país que verga sob o peso das cinzas.
Entretanto, e enquanto as gentes apagam fogos a braçadas de balde, que das torneiras nem um fio, o mesmo ministro anuncia em triunfo que o mais importante, agora, é criar um consórcio europeu que construa aviões de combate aos incêndios, para acabar com a dependência dos canadairs. O mais importante. Ai. Na mesma linha insana de actuação, um outro ministro (o do ambiente?), prometeu há uns dias ceder àgua do Alqueva a Espanha, pois parece que temos que chegue e que tal não comprometerá as nossas reservas. Duplo ai.
Enquanto ardem mais uns milhares de hectares, o primeiro-ministro aquieta as hostes, desvendando que estão para chegar mais meios aéreos, emprestados, esquecendo-se de acrescentar que serão sempre insuficientes e que chegarão sempre tarde de mais. Por momentos, proponho-me a um simples e breve exercício de demagogia e relembro o ministro Portas de má memória e os milhões gastos em submarinos inúteis, permitindo-me supor que três destes talvez dessem para seis ou sete Canadairs, e que talvez (só talvez, quiçá, quem sabe...) estes dessem mais jeito a Portugal do que aqueles.
Por fim, cansada, constato que, seguramente engasgados com o fumo e subjugados à canícula estival que lhes terá derretido os cérebros e a vergonha, esta gente que nos governa enlouqueceu de vez.
As imagens televisivas que se sucedem, dia após dia, lembram um retorno à tevê a preto e branco dos idos de setenta. Pelo ecrã passeiam-se jornalistas afogueados, com o cansaço e os nervos na voz; atrás destes, bombeiros barrigudos, carregados de boas intenções, correm que nem baratas tontas, dão e recebem ordens gritadas que ninguém cumpre, esticam mangueiras que se partem, abrem torneiras que não deitam água, fogem com o fogo a lamber-lhes os traseiros e carregam velhinhos que se negam a aceitar a tragédia; as mulheres choram e os homens apagam as labaredas, que lhes comem os jardins e as hortas, a baldes de água meio vazios. Nos olhos raiados de sangue dos bombeiros, lê-se o desespero e, nos gestos, vê-se o atordoamento de quem não está preparado, nem física nem estrategicamente, para vencer o cabrão deste inimigo que é o fogo.
Em artigos de opinião, em entrevistas, nos blogues, em conversas de café, as nossas existências pequenas e mesquinhas digladiam-se em picardias intelectuais e perdemos tempo a discutir se o fogo é ou não bom para a regeneração cíclica da vegetação autóctone, como se estivéssemos numa qualquer era glaciar ou no início da formação do mundo, e como se o facto de arderem eucaliptos (esses invasores malvados que tudo secam ao redor) fosse, no fundo, uma coisa boa, porque depois cresceria a vegetação natural da zona ( como se a vegetação natural que entretanto despontasse não fosse imediatamente engolida pelas chamas no ano seguinte...).
E quase ninguém fala nos animais que morrem asfixiados e carbonizados, o que me aflige especialmente, pois imagino-os encurralados pelas várias frentes de fogo que os filhos da puta dos incendiários ateiam em simultâneo, sem fuga possível. Ninguém se lembra dos pássaros nos ninhos, das raposas, texugos, doninhas, aves de rapina, lagartos, cobras, coelhos e das muitas outras espécies, algumas delas raras, outras que se extinguem para sempre, designadamente quando o fogo atinge ecossistemas particulares e únicos como os que existem em parques naturais e em áreas protegidas.
E os juízes de turno, fartinhos de julgarem onde fica a extrema do terreno e quem desferiu a sacholada na cabeça de quem, enjoados que estão até à medula da mancha verde que vêm da janela do seu gabinete, isolados no longínquo tribunal de província onde aterraram e sonhando com a promoção que finalmente os trará para os confortos betonados da cidade grande, sujeitam a apresentações periódicas, presumíveis incendiários (não obstante a pena para o crime de incêndio ir de 3 a 10 anos e a prisão preventiva ter, aqui, todo o cabimento, como única medida passível de afastar o perigo de continuação da actividade criminosa).
E eu, interrogo-me: será que as pessoas que vêem a tragédia filtrada pelo conforto inodoro dos ecrãs, à temperatura ambiente das suas salas de estar, se apercebem de como a mesma as afecta, a uma e cada uma delas, pessoalmente? Será que os pais, por exemplo, realizam que, a cada mancha verde que desaparece, explode exponencialmente o risco de as suas crianças padecerem de toda a espécie de insuficiências respiratórias e alergias? Será que não percebem que os fogos não são uma coisa que acontece lá longe (e cujo único resquício é esta mancha negra horizontal que paira no céus), mas que, quando ardem as plantas e os bichos, somos todos nós que ardemos?, nós, que também somos feitos de terra, nós, cujo sangue que nos corre nas veias é seiva que corre nas árvores?
Às vezes apetece-me gritar (até para mim própria, notem) Abri os olhos!, gente que passais a vida enfornados nos vossos assépticos apartamentos citadinos, cubículos de vaidade onde mal cabem os vossos egos insuflados. Abri os olhos, gente que se enoja ao primeiro salpico de lama e rebenta em erupções cutâneas à mera ideia do despontar da verdura primaveril. Acordai!, que a Natureza está a desaparecer e o futuro dos vossos filhos está a arder. Convencei-vos de uma coisa: sem Ela por perto, nós somos nada - e não há cá plasmas, nem ipodes, nem pecês xispeteó, nem playstations, nem turbos último modelo que nos salvem, se teimarmos em renegá-la e em empurrá-la para o quintal do vizinho ou para aquela abstracção longínqua a que convencionámos chamar de campo.
Dá-me ganas, isto tudo. Alguém tem que pagar por esta desgraça. Não, não falo do retorno aos obscuros meandros medievais da vindicta privada (embora...) , mas sim da responsabilização efectiva. A responsabilização política de quem vem permitindo esta catástrofe, descurando a prevenção e desprezando as suas consequências (tratando com laxismo quem a provoca); e a responsabilização criminal de quem larga o lastro do fogo por este país fora. Cá para mim, era prisão com eles: preventiva, primeiro e, depois, efectiva, por muito anos e bons. E, se possível fosse, umas horitas na frigideira, à moda do Tarrafal - facto que talvez os dissuadisse de voltarem a pegar num fósforo nos tempos mais próximos. Mas pronto, já sei: isto é um país democrático. Não há quem o governe, já lá dizia o Júlio César, mas não deixa de ser uma democracia, que não andámos a enfiar cravos nos canos das espingardas para nada.Por isso (infelizmente), os incendiários têm direitos, os madeireiros e os patos-bravos, também, e os políticos, então, esses, nem se fala: têm todos os direitos, incluindo o direito às chamadas férias-avestruz (em que, enquanto descansam lá longe e no fresquinho, enfiam as cabecinhas na areia e fingem que não vêem) e o direito de gozarem indecentemente com a nossa miséria ano após ano e de (não obstante) ninguém lhes partir as caras-de-pau, em directo e no prime time.O que é pena.

(escrito na areia por vieira do mar no 'controversa maresia')

http://controversamaresia.blogspot.com/

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