terça-feira, agosto 02, 2005

Bastidores da politica

A "maior concentração de estadistas jamais realizada na Suécia", resumia o jornal Afton- bladet, conta o antigo dirigente do PS Rui Mateus, entretanto caído em desgraça no interior do seu partido, no livro Contos Proibidos. Memórias de um PS Desconhecido (Dom Quixote), quando relata pormenorizadamente a criação do Comité de Amizade e Solidariedade com a Democracia e o Socialismo em Portugal.

Face à eventualidade de se implantar uma "Cuba europeia" e de se confirmar a tese de Kissinger de que Soares se tornaria num segundo Kerensky - "comentário não muito diplomático", admitirá, mais tarde, o poderoso secretário de Estado americano, na sua obra Anos de Renovação (Gradiva) -, Olof Palme convidou os primeiro-ministros britânico Harold Wilson, alemão Helmudt Schmidt, austríaco Bruno Kreisky, holandês Joop den Uyl, norueguês Trygve Bratteli, dinamarquês Anker Joergensen, israelita Ytzhak Rabin. Mas também se encontravam nessa cimeira de Haga (arredores de Estocolmo), naquele dia 2 de Agosto de 1975, o então presidente da Internacional Socialista (IS), Hans Janitschek, o seu sucessor e ex-chanceler alemão, Willy Brandt, o ministro dos Negócios Estrangeiros inglês, James Callagham (autor do plano com o seu nome, que deveria ser accionado, com o apoio da CIA e do MI6, no caso de o PCP e seus aliados tentarem tomar, de facto, o poder), os líderes do Partido Socialista Francês, François Mitterrand, e do Partido Socialista Italiano, Bettino Craxi. Além, obviamente, do convidado de honra, Mário Soares.

A reunião, realça Rui Mateus, foi organizada por Rolf Theorin, a quem os camaradas chamavam o "Fellini Sueco", "devido às suas reconhecidas qualidades de realizador de eventos políticos espectaculares". De resto, esse secretário adjunto para a organização do partido sueco, como regista Juliet Antunes Sablosky, no livro PS e a transição para a democracia (Notícias), foi "visita assídua" em Portugal desde 1974 até finais de 1977.

"Logo após a sua chegada à capital da Suécia [ Soares] afirmaria, com a força de quem tem por detrás de si o mundo ocidental, que 'se os militares no poder em Portugal escolherem a violência e introduzirem uma política de repressão, o Povo Português resistirá'", escreve Mateus naquele livro que, a crer na longa entrevista a Maria João Avillez (Soares. Ditadura e Revolução, Público), o (então) secretário-geral do PS nunca terá lido.

Juliet Sablosky frisa que os "estudos já publicados" põem a tónica apenas no apoio financeiro concedido ao partido de Soares. E, no entanto, um "olhar mais atento revela que o aconselhamento técnico, o apoio moral e as iniciativas diplomáticas, conduzidas no sentido de ajudar Portugal em questões bilaterais ou multilaterais, foram tão ou mais importante" para o PS.

A real importância desta cimeira - apesar da projecção deste inequívoco apoio político da Internacional Socialista ao seu filiado português -, foi sendo tratada com pinças nos primeiros tempos, decerto pelos acordos sobre actividades diplomáticas mais discretas e pelos fundos disponibilizados.

Bruno Kreisky, em Liberdade para Portugal (edição portuguesa da Bertrand), escrevia, no início de 1976 "Foi um encontro bastante sério e decisivo e Soares, presente como convidado, deu-nos uma imagem sombria da situação. Ficou então decidido criar um Comité de Amizade, sob a orientação de Willy Brandt. Mas sob esta designação ocultava-se - se assim lhe posso chamar - uma concentração de forças solidárias das sociais-democracias europeias com a democracia em Portugal e o Partido Socialista."

"E esta solidariedade teve grande significado", prosseguia o governante austríaco da época da revolução dos cravos; "significou que os governos democráticos deviam ajudar Portugal sem quaisquer condições políticas, pois não se queria ferir o orgulho do povo Português com a impressão de paternalismo político. Mais significou a intervenção social-democrata junto do Governo dos Estados Unidos, no sentido de estes não intervirem e prestarem a sua ajuda, incondicionalmente; para os países membros da EFTA, a que Portugal pertencia desde o início, ela significou a concessão de um fundo de desenvolvimento industrial para Portugal no valor de cem milhões de dólares."

"Por outro lado", concluía Kreisky, "constituiu também para os extremistas um aviso contra os exageros. Mais ainda, pretendeu demonstrar a muitos elementos do exército que não estariam sozinhos, caso se dispusessem a definir-se politicamente no sentido do socialismo democrático." Afinal, o encontro de Haga foi no dia 2 e o "Documento dos Nove" (a facção moderada do MFA, próxima do PS) seria publicado cinco dias depois.

Também Willy Brandt se mostrou prudente ao abordar, em 1978, este assunto do contrapoder face aos comunistas nas suas memórias (People and Politics The Years 1960-1975, citado por Sablosky). "O esforço de auxílio que ali se seguiu faz parte de uma história que ainda não pode ser completamente revelada. Foi produto da colaboração secreta entre uns quantos dirigentes partidários sociais-democratas. Não inaugurámos novas sedes e evitámos a publicidade. Em seu lugar, empenhámo-nos em oferecer apoio político e moral concreto, em combater o derrotismo que se estava a apoderar de círculos influentes no Ocidente" - numa clara alusão a Kissinger.

Em 1979, numa entrevista colectiva que resultaria no livro O Futuro Será o Socialismo Democrático (Europa-América), Mário Soares retorquia a uma pergunta "Nós somos um partido da Internacional Socialista e aí contamos com bastantes amigos. Evidentemente, eu sou amigo pessoal do Schmidt, do Willy Brandt, do Callaghan, do Olof Palme, do Yoergensen, do Kreisky, do Mitterrand, etc. Posso pegar em qualquer momento no telefone e falar com eles." Pode-se estabelecer um paralelo com a afirmação de Guterres, quando o ainda líder da oposição disse que tratava por "tu" vários primeiro-ministros europeus.

Mas, na época, parece que Soares ainda optava por não revelar toda a importância desse encontro, que estaria na origem, em Março seguinte, do célebre comício no Palácio de Cristal, no Porto, denominado 'Europa connosco', onde se juntaram Brandt e Palme, Kreisky e Uyl, Mitterrand e González.

Em Outubro de 1992, num texto escrito para o Nouvel Observateur sobre a morte de Brandt (incluído em Intervenções/7, Imprensa Nacional), já Soares era mais claro. O comité de auxílio "foi a advertência da Europa democrática à União Soviética para que não estimulasse o PCP, e os militares do MFA por ele instrumentalizados, a persistir na sua política aventureirista de conquista do poder; mas foi também uma tomada de posição clara em direcção a Washington, onde Kissinger desenvolvia a bizarra teoria de que a conquista do poder pelos comunistas, em Portugal, seria uma verdadeira 'vacina anticomunista' para o resto da Europa."

Em síntese no dia seguinte à Acta Final da Conferência de Helsínquia - onde Costa Gomes juntou o seu nome às assinaturas de Ford e Brejnev (a conferência juntou 33 países europeus, os EUA e o Canadá) nesse compromisso de uma détente na Europa -, a Internacional Socialista, não só tomava uma posição de confronto perante Moscovo (o que tinha sido sempre evitado), como disputava a influência com Washington. E, depois da experiência portuguesa, onde teria êxito, a IS seguiria o mesmo modelo para lidar com as transições espanhola e grega e com as tentativas de democratização na América Latina e no Leste da Europa.




(DN online)

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