segunda-feira, agosto 08, 2005

Relatividades

Não me lembro com precisão do ano, mas como nessa altura ainda vivia em Cascais, terá sido no Verão de 1996 ou 97. Um incêndio de grandes proporções na Quinta da Marinha, quem diria! As labaredas viam-se na Gandarinha e no Rosário, a um quilómetro de distância. O sobressalto foi medonho. Mobilizou-se este mundo e o outro, a tv interrompeu a novela para dar reportagem em directo, puseram-se a salvo os cavalos do centro hípico, uma famosa empresa de transportes retirou em tempo recorde valiosíssimas obras de arte de alguns residentes, a casa de um conhecido CEO (várias vezes ministro) foi pasto das chamas, mas felizmente foi só uma, rolos de fumo negro interditaram a marginal do Guincho, o parque de campismo da Areia teve de ser evacuado, mas como eram só freaks e casais soixante-huitard ninguém se preocupou, embora os respeitáveis moradores do Birre, entre eles um tonitruante general, assustados com a proximidade do fogo, tivessem apelado aos poderes fáticos. Uma noite de pesadelo. Um porta-voz de Champallimaud lembrou ao governo que «um desastre» teria consequências. A imprensa registou que as casas de Balsemão e Freitas do Amaral continuavam intactas. Comparado com a devastação sistemática dos últimos anos, o incêncio «da Quinta» foi uma brincadeira. Agora o país arde de Norte a Sul. Dois terços, ou coisa que o valha, da floresta, foram pró caneco. Em Ourém parece que arderam vinte casas. Noutro sítio qualquer, mais oito (porém desabitadas). Em qualquer dos casos, casas e haveres de gente pobre. Um amigo cínico diz-me que não é o país que arde, «são as traseiras do país». É por ser assim que ninguém se rala. É por ser assim que o ministro Costa tem o desplante de pedir aos empregadores que dêem folga aos «seus» bombeiros, como se o exercício da profissão de bombeiro pudesse ser um part-time, como se a extensão da calamidade pudesse resolver-se com o concurso de indivíduos decerto bem intencionados mas que devem perceber tanto de combate ao fogo como eu percebo de renda de bilros. No dia em que arder uma casa, uma só, e não é preciso que seja num resort da alta-sociedade, basta que seja numa «urbanização» de classe média, e os repórteres da televisão encontrarem pela frente, não, como tem acontecido, «Esta gente cujo rosto / Às vezes luminoso / e outras vezes tosco / / Ora me lembra escravos / Ora me lembra reis [...] a gente que tem / O rosto desenhado / Por paciência e fome...» (Sophia, Geografia, 1967), no dia em que os interlocutores desapossados forem gente das corporações estabelecidas, nesse dia, o enfado do ministro Costa encontra resposta à altura. Até lá, como me diz esse amigo cínico, «o fogo sempre ajuda a limpar a porcaria». Ou muito me engano, ou vai ser essa a conclusão do tal relatório previsto para 31 de Outubro.

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