O mais velho antifascista, o maquis da lendária resistência francesa, o amigo de Humberto Delgado, o fundador da LUAR, o presidente temporário do PPD, o apoiante do PS , após uma vida estendida por três séculos, partiu, ontem, aos 105 anos, para o "Oriente Eterno", como os seus irmãos maçons designam a morte. Emídio Guerreiro foi "uma mistura de Dom Quixote e de Che Guevara", na expressão do advogado conimbricense, fundador do PS e grão-mestre do Grande Oriente Lusitano (GOL), António Arnaut.
O centenário professor de Matemática faleceu no lar de Guimarães que tinha o seu nome, mas o velório será feito, a partir desta manhã, no Palácio Maçónico, em Lisboa. O "Lenine", nome simbólico que escolheu quando foi iniciado, em 1927, na loja Revolta, de Coimbra, era um Príncipe Rosa-Cruz, pois tinha atingido há muito o grau Sete do Rito Francês (que corresponde ao 18 e seguintes do Rito Escocês). Aliás, numa cerimónia em 2003 foi-lhe entregue (e, também, ao seu amigo Fernando Valle, médico de Arganil e fundador do PS) o Grande Colar Maçónico - Ouro, distinção para quem complete 50 anos de vida maçónica "activa, devotada e impoluta".
Na sexta-feira, depois do féretro passar ainda pela Associação 25 de Abril (de que era actualmente o único Sócio de Honra distinguido em vida, uma honra que também partilhou com Fernando Valle), seguirá para a sua cidade natal, onde as suas cinzas serão depositadas no jazigo que a autarquia vimaranense lhe ofereceu no Cemitério da Atouguia.
Filho de uma família republicana, Emídio Guerreiro nasceu em Guimarães, a 6 de Setembro de 1899. Voluntário para combater na I Grande Guerra, acabou por não ser integrado no Corpo Expedicionário Português. A presença em Portugal permitiu-lhe participar numa das revoltas contra a ditadura de Sidónio Pais, o "presidente-rei", em 1917.
Contestatário do Golpe do 28 de Maio, não só seria um dos participantes da Revolta do 7 de Fevereiro de 1927, que podia ter acabado com a recente ditadura militar - se as guarnições de Lisboa se tivessem sublevado, não deixando os sediciosos do Porto isolados -, Emídio Guerreiro nem sequer ligou ao seu estatuto de assistente de Matemática na Faculdade de Ciências e, aquando da visita de Carmona à Invicta, em 1932, imprimiu um panfleto a exortar a população a receber o Presidente da ditadura com "merda, muita merda, merda às mãos-cheias".
Preso e torturado, acabaria por fugir do Aljube e exilar-se em Espanha, onde se envolveria, com o grupo dos "Budas de Madrid" (Jaime Cortesão, Moura Pinto e Jaime de Morais), na fracassada "revolução dos tanques", conforme relatou ao seu biógrafo Encarnação Viegas. Vivendo em Santiago de Compostela, seria surpreendido pelo golpe militar franquista em Vigo, onde se deslocou a pedido do alcaide, ali assistindo, impotente, ao fuzilamento do autarca. Um seu aluno, embora adepto dos falangistas, protegeu o professor, conseguindo-lhe um contacto com o cônsul inglês, que, perante as dificuldades de um irmão maçon, lhe garantiu o embarque num cargueiro para Gibraltar, de onde o português partiria para França.
Logo a seguir, retornava a Espanha, para se bater ao lado dos republicanos contra os falangistas, voltando a passar a mesma fronteira na "leva" dos derrotados. Adoeceu no campo de refugiados, mas conseguiu evadir-se dali, acabando por entrar na clandestinidade e aderir à resistência contra a ocupação nazi. O "capitão Hélio", seu nome de código, foi reconhecido como herói gaulês no fim da II Guerra Mundial, sendo integrado na forças armadas francesas com o posto de capitão e condecorado com a Cruz de Combatente Voluntário na Segunda Guerra Mundial. Desde essa época e até ao fim do Estado Novo, fixou-se em França, onde seria um dos professores que introduziram as matemáticas modernas no ensino liceal.
Mas manteve sempre a sua actividade de oposicionista ao salazarismo. Na Frente Patriótica de Libertação Nacional, criada após a fraude eleitoral de 1958, seria um dos amigos fiéis de Humberto Delgado no exílio do "General sem Medo". E também uma das primeiras vozes a denunciar o seu assassínio pela PIDE. E na Liga de União e Acção Revolucionária (LUAR), que criou para dar legitimidade política à luta interna do grupo de Palma Inácio - com quem, pouco depois, trocaria acusações sobre o destino do dinheiro do assalto da Figueira da Foz.
Regressado a Portugal, foi um dos fundadores do PPD, assumindo mesmo a liderança, em 1975, quando Sá Carneiro se afastou para, depois, regressar em triunfo ao partido - de onde sairia Emídio Guerreiro, que, anos volvidos, dava o seu apoio ao PS. Quando alguém lhe dizia que tinha sido do PSD, lembrava ao DN Vasco Lourenço, nome da Revolução dos Cravos e membro da maçónica Loja 25 de Abril onde ambos pisavam o mesmo "pavimento em mosaico", o velho oposicionista sublinhava "Nunca fui do PSD; fui do PPD."
Agraciado com a Ordem da Liberdade (como comendador, com a faixa entregue por Eanes em 1980, e com a Grã-Cruz, que Sampaio lhe colocou ao pescoço em 2000), manteve até ao fim a mesma jovialidade com que recebeu os convidados que festejaram o seu centenário na Estufa Fria. E depois de se ter uma vida tão longa e de se cumprirem os deveres para com a comunidade - conclui o grão-mestre do GOL, para definir o sentido do luto maçónico -, "tudo está certo e perfeito".
(DN online)
quinta-feira, junho 30, 2005
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