Por Luciano Amaral - DN online
Segue longa a discussão que venho mantendo com Manuel de Lucena, a propósito do PS, Soares, e outras personagens do tempo do PREC. Não creio que exista entre nós um desacordo essencial. As diferenças parecem ser sobretudo de nuance. Nessa nuance, porém, talvez se escondam duas leituras daqueles tempos que acabem por ser muito diferentes. Ambos achamos demasiado simples a narrativa predominante segundo a qual a partir de Abril de 74 as forças políticas à esquerda do PC (inclusive) teriam logo tentado instaurar um regime comunista, com o PS e Soares a demonstrarem desde a primeira hora uma determinação resoluta em combatê-las. Ambos concordamos que, numa primeira fase, o PS e Soares participam na radicalização da situação, e, numa segunda, são essenciais para a travar. Onde talvez nos afastemos é nos momentos da passagem de uma para a outra e nas razões por que ambas existiram.
Antes de continuar, vale a pena fazer uma nota estamos aqui a falar do PREC, um processo político tão bizarro que desafia a capacidade para estabelecer uma versão final, até porque a postura de certos actores se altera radicalmente no espaço de um ano, por vezes de meses, por vezes semanas, por vezes (sem exagero) do dia para a noite.
Dito isto, procedo de maneira mais ou menos cronológica. Quando a velha senhora caiu, uma das organizações mais bem posicionadas para ocupar o espaço deixado vazio era o PCP. Eis uma ilustração da ideia de que o PCP era, afinal, mais uma das grandes instituições do Estado Novo, uma espécie de duplo, ou espelho, um contra-Estado Novo, replicando a sua estrutura institucional e tendo-a já colonizado em certa medida (como no caso dos sindicatos). Nem a PIDE escapava a isto o PCP estava de tal maneira infiltrado pela polícia política e os membros do partido passavam tanto tempo nas suas instalações (presos, interrogados e torturados) que não existiria à época ninguém que a conhecesse melhor. Um pouco como n'O Homem que Era Quinta-Feira, de Chesterton, a PIDE justificava-se pela existência do PCP e o PCP pela da PIDE.
Assim, quando o regime tombou, o PCP não teve dificuldade em lançar-se sobre a estrutura institucional deixada oca. É esta substituição que explica um fenómeno nem sempre muito acentuado, a inicial moderação do PCP. O PCP não precisava de nenhuma revolução para conquistar o poder institucional, que lhe caiu (pelo menos em parte) mais ou menos directamente nas mãos. Acresce que esta moderação tem raízes mais fundas. Ela estava inscrita na "Revolução Democrática e Nacional" apresentada e defendida por Cunhal desde 1965, no célebre Rumo à Vitória. Correndo o risco de simplificar, a "Revolução Democrática e Nacional" correspondia ao reconhecimento da autonomia própria de uma institucionalização "capitalista", que mediasse a passagem do "fascismo" para o "socialismo". Segundo essa ideia, o tempo era agora para a instalação em Portugal de uma "democracia burguesa".
O quadro que parece desenhar--se, no período que vai de 25 de Abril a 28 de Setembro, é o de uma nova situação política pluralista, com a direita entregue a Spínola (e Sá Carneiro) e a esquerda ao PCP. Ao PCP interessava, para sobreviver e prosperar, o reconhecimento da direita. À direita interessava um PCP ordeiro, que disciplinasse a previsível convulsão social que viria. A quem parece faltar um papel aqui é ao PS e a Soares. Se a esquerda ordeira era o PCP e a direita democrática a dupla Spínola-Carneiro, que espaço lhe restava? Demonstrando a sua "volubilidade táctica" (palavras de Manuel de Lucena), que depois se viria a tornar famosa, Soares optou inicialmente, para sair da irrelevância, pela radicalização de esquerda. O PCP pedia contenção salarial aos trabalhadores? O PS incitava ao irrealismo. O PCP controlava os sindicatos? O PS tentava o curto-circuito através de comissões de trabalhadores. O PCP propunha (como propôs no I Governo Provisório) uma lei da greve restritiva? O PS opunha-se-lhe (tendo conseguido impedir que fosse aprovada). O PCP era a voz oficializada da esquerda? O PS tentava roubar-lhe o lugar, directamente ou incitando a expansão do esquerdismo, com quem tinha algumas ligações, muitas vezes muito próximas.
Tal como no caso do PCP, não era só a táctica a explicar este movimento. O PS possuía à época um programa político virtualmente indistinguível do PCP de Rumo à Vitória (algo que o próprio Cunhal reconhece). No PS havia de tudo, chegando até aos trotskistas radicais e outros esquerdistas. Convém percebermos que Soares não é um social-democrata à escandinava. Ele é, antes, um republicano radical, que tinha passado pelo PCP e se sente mais próximo da pulsão revolucionária do comunismo do que da pacatez ordeira sueca.
A situação existente entre Abril e Setembro viria a degradar-se progressivamente entre um momento e o outro.
Porquê? Para o percebermos temos de introduzir mais uma personagem crucial o general Spínola. Desenvolvimentos, porém, terão de ficar para o próximo episódio.
PREC - História (1)
quinta-feira, junho 30, 2005
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário