quinta-feira, junho 23, 2005

Reescrever a história

Nos últimos dias, a propósito das mortes de Álvaro Cunhal e Vasco Gonçalves, não faltaram oportunidades para ler algumas coisas estupidamente inteligentes.

Comparou-se Cunhal a Hitler e a Estaline.

Escreveu-se que a resistência comunista à ditadura em nada contribuiu para o fim da dita e pôs-se até em dúvida se a dita era tão dura como se dizia.

Também li que Cunhal tinha ódio aos ricos.E que Vasco Gonçalves era o Lenine português.

De caminho, e a propósito da morte de um certo Portugal, fez-se a separação do lixo bom e do lixo mau, partindo do princípio de que todos somos lixo quando morremos.

De um lado, Cunhal e Vasco, atirados para o comum contentor da história.

Do outro, a irmã Lúcia e Champallimaud , esses sim, lixo do bom, passível de reciclagem e branqueamento.


Importa alguma coisa dizer que a vidente de Fátima e o empresário foram duas figuras com relevantes serviços prestados ao fascismo se a própria democracia já os santificou em devido tempo? Basta ler um cronista domingueiro para perceber que Champallimaud passa a história como pioneiro, cavaleiro da indústria e patriota perseguido pela revolução. O homem até deixou uma fundação, coisa que nem Cunhal nem Vasco conseguiram, vejam lá.

Haverá em Portugal algumas bolsas de resistência inteligente a estes conceitos e teses. Mas a memória, a inteligência e o raciocínio são um bem escasso num país onde de há muito se percebeu que a estupidez escreve, edita, governa e manda. Pior: branqueia.

Discordar é uma coisa. Outra, bem mais grave, é reescrever a passagem do tempo. E os factos.

Há quem passe a vida a lutar, a trabalhar e a tentar que disso fiquem marcas positivas na vida colectiva. Em vão. Dificilmente evitará ser atirado para a fogueira, repudiado e enxovalhado.

A estupidez, essa, desenvolve-se em campo aberto e tem reconhecimento público. Sectária, arrogante e mentirosa, a estupidez mantém a memória, a inteligência e o raciocínio a larga distância. E com inegável sucesso.

A estupidez não é inteligente, o que seria irónico. Mas é esperta. E Portugal é seguramente um país de espertalhões onde os inteligentes têm pouco ou nenhum futuro. Não é sequer preciso ser inteligente para percebê-lo. Basta ser estúpido.

(Miguel Carvalho - palavrasdeparede.pt - Visaoonline)

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