sábado, julho 02, 2005

Centros de detenção para imigrantes sem papéis

Por MIGUEL PORTAS - DN online


Noticia o Público de 29 de Junho que o Governo estuda a instalação, em Portugal, de um centro de detenção para imigrantes sem papéis. Há vários pela Europa. Até já há "especialistas" do assunto. Um foi convidado para vir a Portugal explicar como funcionam. Não sei o que disse a sumidade. Suspeito que prefiro não saber. Porque esta semana visitei um desses centros. Vi. E tive vergonha. Vergonha e raiva. Foi em Lampedusa, uma minúscula ilha situada a sul de Malta e ao largo da costa leste da Tunísia. Aqui seguem alguns fragmentos do relato dessa visita. Julgue por si mesmo

"Rodeiam-nos em círculos cada vez mais estreitos. Há sempre alguém que fala francês, arranha o inglês ou se desenrasca em alemão. São quase todos jovens. Prematuros atirados para a vida adulta no fio da navalha. Num dos círculos, a advogada que nos acompanha retira um papel e pede a alguém que nele escreva o nome e nacionalidade declaradas. Em seguida dá-lhe um número de telefone. A roda estreita-se. Mãos frenéticas descobrem naquele papel meio amarrotado o seu passaporte para a vida. Impossível conter a ansiedade. Algumas folhas rasgam-se, disputadas por mãos concorrentes. "Há para todos!", alguém diz. Mas não adianta. O círculo continua a crescer. Visto de cima, deve parecer anárquico. Visto de onde estamos, é danado.

Fazemos o que podemos. Alguns deputados pegam em papéis. A esperança distribui-se em formato A4. As canetas não chegam. São apenas as nossas. Os cigarros também se esgotam. Árabes, aquelas 197 almas estão habituadas a fumar como chaminés. Aqui têm direito a cinco cigarros por dia. O meu bloco de notas regista outras regalias uma carta telefónica de cinco euros por cada dez dias; um litro de água diária por cada dois; um litro de leite por cada seis; um brioche pela manhã e macarrão ao almoço e ao jantar.

Os duches são de água do mar, que outra não existe ali. A farmácia, que trata das equimoses e problemas de pele, só tem 'burro', ou seja, manteiga de cacau. Quanto a abcessos, pés inchados e maleitas várias, Alá que desenrasque.

A maioria está ali, nas traseiras do aeroporto de Lampedusa, há mais de um mês. O campo tem quatro camaratas prefabricadas, cada uma com 40 a 50 camas com lençóis esfarrapados. São as únicas sombras do lugar. Sombras metálicas, que suportam temperaturas de 40 graus...

Não há refeitório. Para comerem, os 'hóspedes' sentam-se no chão, junto às grades do portão, com toalhas protegendo as cabeças da impiedade do Sol. Líderes informais garantem a disciplina possível naquelas circunstâncias. Uma semana no centro equivale a um certificado de antiguidade.

Não há que fazer nem para onde ir. Exíguo, o campo é inteiramente murado e rematado a arame farpado. Numa das extremidades, um pedaço de chão tem lajes de pedra lisa. É o lugar de oração, explica um dos responsáveis. 'Decerto por tolerância e respeito, meu filho da puta', estive para comentar. Mas não disse. Não saiu. O humor negro não cola ao lugar. 'Aquilo' é a pior e a mais precária das prisões que vi. Precisão é um campo temporário de concentração.

Os deputados visitaram-no num 'dia bom'. Cinco dias antes, o campo tinha mais de 900 pessoas. Cinco vezes a lotação máxima. Fosse por causa da visita, fosse porque esta é a regra em Lampedusa, os excedentes foram sucessivamente transferidos para outros campos em Itália. Ou recambiados para a Líbia. 'Quantos foram para a Líbia, sr. director?', perguntamos. 'Não sabemos. Não sabemos para onde vão os transferidos. Terão de perguntar ao ministro do Interior'. É mentira. Entre as centenas de transferidos, tínhamos informação de fonte segura de que pelo menos 45 foram recolocados na Líbia. Aí, são colocados noutros campos, enquanto aguardam repatriamento para o Sudão ou para o Chade. Uma nova odisseia. 800 quilómetros de Via Ápia, pela estrada dos sudaneses, atravessando o Sara em condições de transporte que não é difícil imaginar. Impróprias até para gado."

O resto do relato poderá encontrá-la no site com que este texto se encerra. Mas é preciso mais? Se odiasse, diria que estagiem nestes centros de desumanidade os canalhas e patifes que os inventaram. Como não odeio, apenas digo: não se atrevam a colocar em Portugal esta vergonha. Campos de concentração temporários na Europa do século XXI, não, obrigado.

www.miguelportas.net

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