domingo, julho 24, 2005

História Natural

“O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso”
Álvaro de Campos

'Após a expansão quinhentista e um pouco à semelhança de outras nações europeias com tradições igualmente expansionistas, foram reunidas em Portugal vastas colecções de história natural (minerais, fósseis, plantas, animais) que constituem um património riquíssimo e único. Acima de tudo, fazem parte da nossa memória colectiva. O mesmo se passa com as colecções actuais, que mesmo antes de fazerem parte da história, nos fornecem informações preciosas sobre o que ainda temos e o que podemos fazer para continuarmos a tê-lo.
Em Portugal, as colecções de história natural alojam-se tradicionalmente em museus associados a instituições universitárias onde são ministrados cursos ligados às ciências naturais. De facto, nunca existiu um verdadeiro museu nacional de história natural (embora exista um com esse nome que depende da Universidade de Lisboa), independente destas instituições e com uma missão própria, como acontece na maioria dos países europeus.
O desinvestimento nestas áreas tem sido tal, que muitas das colecções estão em grave risco de perda total, por total falta de manutenção e por falta de preparação dos decisores directos no que respeita às medidas a tomar. Situações anedóticas de exemplares deitados para o lixo, ou literalmente comidos pela traça são infelizmente frequentes.
Numa época em que as questões relativas à biodiversidade começam a ter um tratamento sério e a ser alvo de uma preocupação real incluída nas políticas europeias, julgo estarmos por cá em franca regressão. Acredito que só com uma redefinição de políticas concretas de âmbito nacional, seja possível pôr termo a esta sangria desenfreada a que passivamente assistimos.
Se é verdade que com a democratização das novas tecnologias, o conceito tradicional de museu, no que à parte de exposições públicas diz respeito, necessita de uma reavaliação, muitos passos já foram dados nesse sentido um pouco por toda a parte. Neste campo não é necessário ser inovador. Apenas imitar os melhores. Eles certamente não se importarão. Os museus de história natural de Londres, Nova Iorque ou Madrid não deixaram de ter visitantes… Ao mesmo tempo, estas instituições são o albergo de muitas sociedades científicas, que reúnem um manancial humano de conhecimento demasiado precioso para ser desprezado.
Em muitos países europeus, os museus de história natural estão ligados a uma instituição estatal de investigação (por exemplo o CNRS em França, o CNR em Itália, ou o CSIC em Espanha). Creio que o que mais se assemelha a tal organismo em Portugal é a Fundação para a Ciência e a Tecnologia, embora com muito menos valências. No quadro orgânico que conheço, penso que a solução para o problema passa pela criação de uma rede de museus de história natural que por si só adquira o estatuto de laboratório associado, sendo para isso definidas as competências e as valências de cada unidade. Só deste modo é que programas internacionais como a “GBIF - Sistema de informação da Biodiversidade Global” ou a “Iniciativa Global sobre Taxonomía” promovida pela Convenção da Diversidade Biológica das Nações Unidas, terão no nosso país um interlocutor forte e abrangente, podendo tirar proveito dos projectos que surgem.
Está também por fazer um levantamento rigoroso de todas as instituições públicas e privadas que reúnem um espólio de história natural merecedor de atenção especial. Sem isso, será muito difícil definir as principais linhas de actuação com vista à preservação do património encontrado.
Cuidar das colecções de história natural é cuidar da nossa memória colectiva. Se não nos passa pela cabeça deixar ao abandono os escritos de Fernão Lopes, a Custódia de Belém, ou a Bíblia dos Jerónimos, por que razão é que permitimos que isso se passe com as colecções de história natural?'

(Gonçalo Calado no 'Conta-Natura')


(Fotos de Franclim Ferreira)

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